terça-feira, 6 de setembro de 2016


Sobras de Férias

Maria

(Para meus netos que enfeitam meus dias de julho.)

Na esquina, o último carro dá outro  adeus para a vovó que fica desconsolada no passeio da casa vazia. Mãos se agitam nas portas do carro e eu espremo os olhos embaçados pra receber aquela saudade que já começa antes de ser...

Entro sozinha.

Reparo na casa.

Não sei por onde começo a reorganização das coisas. Olho tudo e prefiro pegar meu tricô para pôr as emoções no lugar: dois juntos, laçada, um tricô, um meia....

As laçadas fizeram um apanhado dentro de meu coração e, então, vou ajuntando algumas coisas, as  mais descombinadas  possível. Como elas estavam dentro de casa, não sei...Como no povo achava o lugar das camas, achava as meias, os tênis, juro era um milagre! Desisto. A solidão me desanima.: dois juntos, laçada....

Deixo a tarefa para o outro dia.

Segunda-feira: D. Branca, a máquina não quer bater...Era a Vani, pedindo socorro...

Desço a escada, as galinhas vêm pro portão, caladinhas, entortando a cabecinha, pensando que vou jogar mais milho...Os dois coelhinhos tremem os bigodes, crentes que vão ganhar ração, mais já estão mais do que tratados...

A máquina não vai mesmo funcionar. O cesto  derrama uma ruma de roupa e eu fico impressionada de saber que aquilo tudo se acomoda nos armários...

Resolvo rápido:

-Comadre Maria, será que a senhora pode vir lavar uma mala de roupa pra mim?

A comadre pôde. E chegou, como nos velhos tempos. Pano na cabeça, pito de palha atrás da orelha e muitas novidades,  quase aos gritos, de uma enfiada só. A casa ficou alegre, até  parecia ser outra....

Cá de cima, eu podia ouvir a Comadre cantando enquanto esfrega as roupas nas mãos, em meio a um monte de espuma que se espalhava pelo cimento , enchendo  o ar de um perfume que há muito eu não sentia: perfume de infância, de casa grande, cheia de filhos, antes da chegada da máquina de lavar.

Até uma trempe a Comadre inventou de arrumar no terreiro:

_ Tá doido, Comadre Branca, se não freuvê as roupas brancas, ninguém dá conta de tirar o chujo...

E mais isso, mais aquilo, de repente, o palco era outro: tacho na trempe, folhas de mamão na fervura, gravetos fazendo um fogo assanhado: a grama, pasto exclusivo das galinhas, ficou coberta de roupas ao sol, para clarear, Comadre...

Ah, até o batedouro antigo, que está sem serventia, ela descobriu. E plaft, plaft, plaft, a roupa apanhava em suas mãos ágeis...Enquanto batia a roupa, cantava  alto, compassado. Se a música era esperta, a roupa sofria na pedra do tanque:

 

“Nossa, nossa ,
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego...”

 

Vani ficou entusiasmada e cantava junto, às vezes até dançando com a vassoura.

_ Que que é isso, Vani, credo fico até com vergonha do povo passar e escutar

 essa berreira... Vani finge não escutar e varria dançando, num dueto com a Comadre...

 

.

Às vezes, a lavadeira  cantava uma música mais lenta e, eu acho, até a roupa ficava romântica, e      as batidas eram lentas e delicadas: quase  uma valsa de Strauss...

 

“Meu coração, não sei por quê

Bate feliz, quando te vê...”

 

Cá dentro, Vani e eu juntávamos as coisas mais estapafúrdias dos netos: cordões, papéis, mentira, plásticos-hoje quase não se usam papéis- de salgadinhos, restos de pipoca, mil embalagens de GELADINHO, que até a vovó andou saboreando, para alegria e gozação dos netos...

O almoço foi ao som das mil novidades da Comadre: acidentes, mortes, pares separados, juntados, amigados, namoridos, um vocabulário bem moderno, com algumas palavras que nunca tinha ouvido.: NAMORIDO, por exemplo.

-Que que é isso, Comadre?

_Uai, Comadre, é mais que namorado e menos que marido...

Muito bem explicado, ela  está afiada  nos modernismos...

Varal cheio de roupas murchas – não gosto de ver roupas vazias ao vento: me dá uma tristeza desconhecida, um abandono....

Hora de apanhar as roupas. ( No tempo do BEM, ele me ajudava  nesta tarefa... ele  tirava a peça do varal, eu dobrava e punha em uma bacia grande....)

 

Noitinha, boca-da-noite...

Casa arrumada, máquina no conserto, a Comadre se foi, dando mil adeuses, mil abraços, mil promessas de voltar.

E eu fico pensando que bom seria se a máquina não tivesse conserto... Se nem um filho inventasse de me dar outra...

A comadre voltaria, ia ser tão bom, tão alegre!

Hora de fechar a casa – fico sozinha de novo, com o silêncio cantando nos cômodos vazios.

Vejo uma ponta de linha caindo do guarda-roupa, lá no alto. Vou puxando, puxando, devagarinho, devagarinho...

Dois papagaios de plástico, um rosa e outro vermelho, caíram sobre minha pobre cabeça, pousaram sobre meus ombros cansados, como asas protetoras. Desembaraço-me das linhas...São as pipas que ficaram esquecidos lá em cima, longe da confusão cá de baixo...É o novo esconderijo que o Artur, meu neto, arranjou para seus brinquedos... Um é dele, outro do Lucca, amigo que vem junto, como se fosse outro neto....

Aliás,  an passant,  os papagaios quase não saíram do lugar: o bendito computador tomou todo o tempo de meus netos aproveitarem o vento, o sol, a alegria de correr, esfolar joelhos....

Ligo a televisão.Leonardo canta:

 

“Não aprendi dizer adeus....

Não sei se vou me acostumar...”

 

Meu coração responde, concordando;

-Eu também não...

Nunca vou aprender dizer ADEUS, NUNCA...

 

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Dores do Indaiá, 27 de julho de 2016.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016


 
Queridos leitores da Maria.
 
Tenho recebido tantos recados amigos, tantos pedidos para publicação de crônicas que, acabo de postar mais algumas para vocês matarem as saudades de Dores do Indaiá, do nosso jornal, de nossos azuis e luares...
É muito bom saber que levo alegria para vocês. Afinal, semear alegria é brincar de ser mágica....
Um abraço dorense da Maria (Branca)
 
 
 
 
 
 
 
UMA CASA MINEIRA

Maria

        Com certeza!

        Mamãe controlava nossa casa com pulso mineiro. Isso quer dizer, com mil manias, mil crendices populares, mil superstições.

        Nós, a meninada, passávamos  rabiados, como dizia a madrinha Maria.

        Comida nenhuma dava certo com outra. Manga com leite, carne de porco com manga... Pepino era um  veneno e só papai.Mamãe falava que  papai era   muito topetudo, que só ele  se atrevia a comer do tal veneno! Eu ficava impressionada de ver como o meu pai era um herói: comia pepino e não morria.    Ovo era outro tendepá na casa da D. Fia. Nada dava certo com ele! E, se alguém não resistia à tentação, lá vinha a cantilena:

        _Depois de comer ovo, tem de ficar duas horas sem tomar água!

        _ Por quê?

        _Ah, porque fazia arrotar choco...

        Nossa! Jabuticaba era outro grande perigo! Dava tonteira, explicava mamãe.

        E goiaba? Jesus, quantas vezes passei vontade de comer goiaba vermelha... Porque, segundo os entendidos, era mais remosa...

        Cana, só lá pelas oito  horas da manhã, uns dois gominhos que papai colocava nas canecas esmaltadas de cada um.

        “Banana”  suspirava mamãe, de  manhã é ouro, de tarde é prata, de noite...- mamãe fazia um ar trágico e completava: de noite, MATA!

        Verdade, até hoje não sou capaz de comer uma bananinha, por mísera que seja, depois das seis horas da tarde  – hora misteriosa, boquinha da noite.... Ah, couve e repolho na janta, jamais! Isto é comida pesada, sentenciava D. Fia.

        Garapa? Nunca tomei! E o pavor de dar ataque, de sofrer sucesso, (sofrer acesso) como profetizava minha santa madrinha...

        Pipoca, a gente precisava moer nos dentes, pra não ter de alperar do alpendre...Tradução da fala da madrinha: operar do apêndice...

        _A gente não é galinha... Galinha não tem dentes, mas tem pedrinha na moela... Mamãe era entendida em apêndice, pelo que eu ouvia...(Ah, que vontade de  ser galinha e ter pedrinhas na moela, pra não ter que moer as pipocas nos dentes, pensava a menininha...)

        Falando em milho... e a bendita canjica? Dia de tormento. Bem longe da janta, mais longe ainda do banho. À noite, de jeito nenhum!

        _Tomar banho de assento depois de canjica, pode dá até congestã...

        _Ou ursa, arrematava madrinha. Ah!, gente! Até que ursa é mais fácil de falar do que úlcera, convenhamos. Só que, a avoadinha aqui, pensava que comer canjica fazia nascer uma ursa de verdade lá dentro da minha barriga, com olhos, dentes, unhas, ah, que horror – nunca comi canjica naqueles anos dourados! Só mais tarde, muito mais tarde!

        Os remédios pra dor na boca do estambo (estômago) eram os piores que já vi: chá de amor-deixado, chá de folha-de-mamão, chá de boldo, marcela e até chá de cinza de fogão. Era só esperar a cinza assentar no fundo da xicra...

        Ah, havia uma xícara famosa, - a CHAVA – (chávena) que só faltava  matar a gente, pelo tamanho, pelo conteúdo, quase sempre amargo, com gosto de remédio para bicho (se bem, que, naquele tempo, bicho nenhum  tomava remédio...)

        _ Toma a CHAVA toda, minina. Se não arresorvê, tem de tomá o BUSCAPÃO (Buscopan)...

        Mas, o melhor de todos os remédios –o  abençoado- era o tal de purgante de cramelano (graças a Deus, nem sei como se escreve o bendito purgante...)

        Banho, outro tutu lá de casa... Só depois de três horas do cumê, dizia toda a Estrela...  E, no quarto fechado, pra evitar as correntezas, pra não istuporá.

        _ Já vi um home que virou a cara pra trás, porque istuporô....

        _É... ele tomou banho de assento e saiu              no sereno da boca da noite...

        Outras pérolas da CASA MINEIRA, onde vivi, entre mil cuidados e carinhos. E da qual, milagrosamente, escapei de tanto perigo.

        _ Olhar no espelho depois da comida, de jeito nenhum!

        _Tirar bicho-do-pé, também na hora fatídica, era um perigo : dá teto! (tétano)

        _ Cortar unhas, credo em cruz (Claro, depois da comida...)

        Correr, sair no sol, deitar de bruço, lavar roupa, molhar os pés, nada, nadinha disso, a gente podia fazer depois do cumê, dizia a Estrela toda!

        Ler, depois da comida, também era um Deusoliveguarde!...

        E a madrinha Maria contava um causo que arrancava admiração da plateia: nós, a meninada... “Um cumpade da mãe comeu, garrolê e...oh, ( madrinha fazia o sinal da cruz, tadinha!) foi pro bico do urubu!

        E eu, sonsinha, pensava que garrolê era uma comida chique, de outro lugar, quem sabe de outro mundo, japonesa, sei lá...

        Graças a Deus, lá em casa, nos salvamos de um remédio pra defruxo (defluxo, resfriado...) receitado pelos mais velhos para curar todos os males do peito, chiados, asma...Grande parte dos meninos estrelenses se lambuzava o dia todo, com um pedaço de toucinho cru, passado no sal grosso......

        _É bom pra untá os peito, falava a sabedoria da madrinha Maria...

        Ah, meu Deus! Escapei! Estou viva!

        Só não escapei da saudade...E, pra isso, não há remédio...

        Vivo com o coração carregadinho de saudades daquela casa mineira.

         Com certeza!

 

        ***************************************************

        Dores do Indaiá, 7 de maio de 1997.

 

O BIFE DA TOTA

Maria

Ela era niquenta pra comer. Era cheia de titicas, cheia de dedos, a minha cunhada.

 

Fora de casa, era conhecida pela distinção, discreta, por uma  grande timidez.

 

Inteligente e culta, tinha mil recortes, minuciosamente catalogados e guardados a sete chaves.

 

O  armário da Tota era um tesouro e o dia em que ela resolvia abri-lo, era uma festa para a sobrinhada e... para mim, a cunhada, bem mais nova que a turma toda da casa, vista como uma mocinha curiosa...

 

Tudo que a gente sonhava e precisava estava lá: poesias, biografias, letras de músicas, gravuras, receitas, moldes, amostras de crochê e bordados - era um Bazar, o armário da Tota. Aquele BAZAR parecia gente e tinha até apelido...”ARMAZÉM MEDEIROS” cujo nome era cochichado, em tom de troça ... e de inveja...(A Tota fingia não ouvir, mas ficava meio desconfiada e o silêncio voltava)

 

Agora, tesouro  mesmo que ela possuía, era sua memória. A gente dava um mote, puxava um pequenino  fio e ela, tímida a princípio, desfiava a História de Dores do Indaiá com datas precisas, com detalhes interessantes, sobre parentescos, casamentos, costumes antigos e casos engraçados.  Enquanto conversava, com um pé, ligeiramente no ar, ia ritmando a conversa com o chinelo na pontinha dos dedos, bem na pontinha... E, quando ele ia caindo, ia ca-in..in...do...o-o-o-o, a Tota fazia uma pirueta graciosa com o pé e o chinelo voltava ao lugar.

E a História e a música continuavam. Às vezes, cantávamos juntas e ela disfarçava a timidez  correndo a medalhinha do cordão de ouro, pra lá, pra cá, pra lá, pra cá...

 

Mas, como eu dizia, a Tota era niquenta para comer. As irmãs que, na falta da mãe, passaram a dirigir a casa, tudo faziam para que a Tota se alimentasse bem, porque - me esqueci de contar- ela tinha a saúde delicada e uma asma que não a deixava em paz. Daí... o momo todo...

 

As irmãs cochichavam - em tom de uma zanga  carinhosa:

 

_Ah, a Tota é assim, mas  é só aqui em casa...

_Quando viaja, nas férias, oh, come de tudo nos hotéis...

 

E contavam como a Tota apreciava a comida do Hotel “São Domingos,” em Belo Horizonte, segundo as companheiras de viagem, todas professoras, em Curso de Férias...

 orizonte, HorizonteHoorizonte

      

Mas, em casa, era desconfiada com a mesa, com os talheres, com os cheiros, com os temperos, uma graça.

 

Durante as refeições, todo cuidado era pouco: qualquer assunto meio atravessado enfastiava a Tota.

 

E o Tonico Caetano, tio e vizinho, já aposentado, almoçava mais cedo e ia tumbar as prosas na casa do irmão.

 

Aí, a Tota chegava do Grupo, onde era Professora de ARTES. A sessão do almoço começava com a pontualidade e um leve ar cerimonioso, característicos da casa: as pessoas, os móveis, a fala, os causos, tudo era tradicional e muito, muito reservado...Eram mineiros da gema, já se vê...

 

Gente, até hoje, não sei porquê, naquela casa tão tradicional, ia-se comer uma inusitada carne de búfalo – novidade surgida há pouco e recebida com cautela pela população. Búfalo! Logo na casa da Tota! (Eu desconfio que isso foi arrumação do Tonico, mais aberto às novidades...)

 

Claro, o Tonico Caetano , alegre e gozador, participou do segredo do almoço e aguardava, curioso o desfecho ...

 

Tudo certo, tudo normal, mesas, rostos, passos e tons de voz, tudo muito velado, tudo muito formal. E... foi aí que erraram: De repente...Parece que houve algum sinal misterioso no ar e todos quebraram o costume da casa:

Começou pela cozinheira, a Maria Loura, que  veio da cozinha com a travessa de carne, palpitando:

_ Hoje a carne tá tão cheirosa!

 Parece que foi o sinal misterioso...

 Todos se animaram e  saíram do sério, cada um cuidou de elogiar a carne...

_ Que carne macia!

_ Que cheiro bom!

_Hoje a Maria acertou no tempero!

Até o Sô Joãozinho, o chefe da casa, resolveu dar o seu parecer:

_ É... Carne tem de ser lá do Zé Ingué! É por isso que faço questão de ir lá, todo dia – trago a carne fresquinha....

 

A Tota, muito viva e observadora, examina o bife: antes de servir-se, vira a carne pra  pra lá, vira a carne  prá cá e decide:

 

_ É... tem dúvida aqui.... Vocês estão elogiando demais essa carne! Tem uma dúvida qualquer...

_ Desconfiada,  niquenta, ressabiada, desculpou-se e saiu da  mesa...

Nesse dia, passou a mingau, para aflição das irmãs...

As gargalhadas do Tonico e do meu sogro, Sô Joãozinho, retumbavam lá na Praça antiga, longe da Tota, emburrada no quarto...

Aprendi. Aprendemos todos aqui em casa. Quando uma coisa é muito elogiada, muito explicada, calma lá! Tem coelho nesse mato...

E a gente sempre avisa pro outro:

_Olha o bife da Tota.

E temos nos safado de poucas e boas!

_Mineiro é bicho desconfiado, dizem todos.

_Será?

NO PORTÃO FECHADO.

Maria

 

        A voz entrou pela casa a dentro, embarafustou-se pelo corredor, alcançou-me na cozinha e a curiosidade se instalou em meus passos.

         _Quem será? Nossa, e já fechei o portão...

         Ajeitei o cabelo de menina – na testa de vó – tentei livrar os olhos daquela franjinha adolescente, completamente inadequada para  a dona da casa. 

         -Eta cabelo teimoso, pior que o meu coração. Tudo envelheceu, menos ele. Não segura grampo, não segura arquinho, não se prende com gominhas...

         Pronto. Cheguei ao portão fechado.

         Era outra senhora, miudinha, bem arrumada, com bolsa elegante, conjunto discreto...

         _Você é a ... a...

         _ Lilita, falamos juntas!

         _Vou pegar a chave...

         _ Não vai, eu só estou passando...

         _ Mas, tantos anos assim não podem só passar no portão...

         Rimos juntas.

         _ Lilita...

         _Branca....

         A gente ria, eu ia pegar a chave, não pegava, ela ia embora, não ia, ela ia entrar, não entorou, ela ia ...

         A visita ficou assim, entre grades: eu de cá, ela de lá – duas prisioneiras da infância, da casa da Tia Alice, da casa do Tio Vicente-  a gente era prima de mentirinha, de verdade verdadeira...

         _Eu fui madrinha do Marquinhos, com seu irmão Carlos...

         Um silêncio, uma piscadela molhada...

         _Eu sou madrinha da Gislene... Madrinha de sapatinho...

         _Eu nunca ouvi falar nessa madrinha....

         Rimos de novo...

         -É, Lilita, eu segurei os sapatinhos de lã da Gislene, na hora do batizado... Pra untar os pezinhos da neném com óleo bento...

         _Gente..

         _Pois é, Sou madrinha dela... De sapatinho....

         _Me fala: quero um livro seu, o último, porque o primeiro já sei de cor e salteado...

         O salto no tempo foi tão grande, que demorei a perceber que a menina já era uma senhora. Escritora.

         Fiquei meio acanhada do título - há tanto tempo não nos víamos.  E, nesse pedaço de vida, inventei de escrever Estrela, Dores, lugares, gente...

         _ Sabe, peguei um táxi e fui lá na sua Estrela, só pra ver sua casa, a do livro.

         Segurei nas grades do portão – minha casa!

         _ Mas, ela não existe mais, perguntei pro homem do Posto...

         -E a igreja?

         _ Estava fechada...

         -Aí voltei e vim te ver...

         -Vou pegar a chave...

         _Não vai, não – estou no Hotel, não posso me demorar. Me dá o livro...

         Voltei com um livro e tive a impressão de que nunca o tinha visto...

         _ Que bom – ele é maior do que o outro! Ah, vou ler até de madrugada...

         Rimos lágrimas juntas...

         Passei o livro pelas grades do portão, quem sabe com medo de que ela partisse, miragem, como chegou,

         _ Pôs dedicatória?

         Fiquei vermelha, como há tempos não ficava... Imagina, eu fazer dedicatória pra Lilita, testemunha de minhas alegrias, as pequenas... Pequenas, não: as mais belas e maiores!

         _Faço questão...

         Escrevi, meio desajeitada, pensando que ela é que tinha que fazer uma dedicatória para mim. Pela poesia do encontro.

         _ Escreve...

         E eu, que tenho mania de escrever uma crônica para cada leitor, só consegui deixar lá, debaixo do pêndulo antigo que enfeita a página:

         “Lilita, obrigada pela Hora Mágica que me proporcionou hoje.”
 

         Nós nos abraçamos, pelas grades, presas lá longe no tempo-menino.

         Um beijo velho/infantil. Com gosto de ferrugem das grades...

         Ela foi tropeçando, parando, lendo, voltando, indo, não indo.

         Então, só pra ter o que dizer, ouvi , de novo, sua voz:

         _Amanhã vai ser lua cheia – olha, ela já está quase fechada...

         E eu repeti, com uma voz que era a de minha mãe, que só ela falava assim:

         _ É mesmo... A lua tá derramando....

        -Derramando o quê?

          Deve ser poesia que a lua derrama em portões velhos....

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Dores do Indaiá, 11 de fevereiro de 2014.

FOGO APAGADO

MARIA

 

        Naquele tempo, todos os homens andavam de terno de brim-cáqui, uma cor-sem-cor, sem-pó, e sem graça.  Os homens daquele tempo eram melancolicamente iguais. Em Dores do Indaiá, inclusive.

Pra completar o figurino, todos usavam bigodes e chapéu-  também cor-de-cuia_-um desastre em termos de elegância...

        Também, naquele tempo-do-onça - somente aos domingo- era permitido deixar o fogo da fornalha apagado. Apagado, apaga-a-a-a-do, não! Ficavam as cinzas cobrindo as brasas _ o famoso borralho _  guardando as fagulhas para um novo fogo.

        Nos dias de  semana, o fogo crepitava o dia todo, acompanhando o trabalho sem trégua. Eram mil cafés, eram mil bocas, eram mil almoços, mil quitandas,  mil jantares, mil ceias. O fogo dormia tardão da noite e mal cochilava no borralho. Madrugada ainda, as brasas eram assopradas e tudo recomeçava.

        Aos domingos, depois  do almoço farto, o trabalho ficava debaixo do borralho, o ânimo se transformava em brasas dorminhocas, debaixo do tépido cobertor de cinzas.

        As domésticas moravam no serviço, como era o costume da época. Mas, aos domingos, tinham uma pequena folga, uma breve pausa de descanso, passeavam, visitavam os parentes e voltavam para fazer o jantar. Claro, aos domingos jantava-se, e bem! Tempo santo!

        Pois, foi num domingo morno, hora do borralho, que o compadre chegou àquela casa. Tudo em silêncio, dormitando.

        O dono da casa chamou a mulher e, foi com os  olhos borralhando, que receberam o compadre _ de mala e cuia, como bispou a mulher.

        Mala guardada, cavalo solto no pastinho, lá se foi a comadre para a cozinha. Ela estava tão apagada quanto aquele fogo da fornalha...

        Assoprou as brasas, avivou o fogo com uns gravetinhos e começou a preparar o “café-do-meio-dia”. Esse nome  queria dizer, quitandas, leite adoçado, café, chás, queijos, biscoito frito na hora... Ah, e o pão de queijo que era servido ainda quentinho...

        Barriga cheia, toca a conversar. Causos e mais causos, risadas sonolentas e antigas, como todos os causos  mineiros.

        Pausa na prosa, Um sono gostoso tomando conta da comadre que sentia as pernas bambas e os braços com-pri-i-i-i-dos, parecendo que ia ter uma morredeira.

        Para espantar o sono, a comadre vai prosear com o marido.

        Chega ä janela que dá para um pequeno jardim e puxa o ar perfumado, chamando forças para o domingo. (Esquentar a água para o banho do compadre, arear a enorme bacia de cobre, ajeitar toalhas, ai, que peleja!)     

        O cheirinho do jardim perfumou o ar, deu-lhe novo alento, foi um refresco na tarde de fogo...

        A comadre encostou-se bem perto do marido, achegou-se bem e cochichou para ele, num desabafo:

        _Será quantos dias esse aborrecido vai ficar? Viu a mala dele?!

        Horrorizada, ela ouviu a voz do compadre explicando:

        _Desculpa, comadre... Não vou delatar muito...

        Mais horrorizada ainda, viu que o homem da janela não era o  o seu marido!!!!!!!!,

        É que, ele também... usava terno de brim-cáqui...E chapéu cor- de-cuia...

 

        Tiveram que esfregar  alho e álcool nos  pulsos da comadre, que teve um desmaio e ficou três dias de cama.

        _E o compadre firme, com a malinha!

Ingenuamente, ainda falava:

        _Coitada da comadre, ficou tão satisfeita com a minha visita que até sofreu um sucesso...

        _Imagina se a patroa tivesse vindo também...

         

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`Dores do Indaiá, 7 de fevereiro de 2007.

               

               


ESTRELADOS DE MINHA INFÂNCIA

Maria

                Ah! Nunca senti tanta saudade dos tipos populares de Estrela!

        Nunca pensei que ia ser bagageira de tantas vidas, de tanta ternura e poesia. Com eles,,pelas ruas e becos empoeirados, fui armazenado belezas, guardando sorrisos puros e olhares de outros mundos. Fiquei para contar como eles eram belos em seus andrajos, como sorriam bonito com aquelas bocas murchas e moles. Fiquei. Meu coração descobriu, em cada um, a feiura mais bonita que havia, a poesia mais sem rima que eu ouvi.

        Eles enfeitaram minha infância. Como as fadas e as bruxas, como os príncipes e rainhas, como São Tarcísio e Santa Terezinha. Como os pastorzinhos de Fátima.

        Eles souberam marcar a minha alma como as valsas vienenses que a igreja tocava às 18 horas. (Ah, 6 horas da tarde é mais bonito, é a boquinha da noite...)

        O João Macuco,-  o Mota, com seus cinturões de tachinhas e ilhoses, seu cordão de barbantes coloridos  no pescoço de Hércules, rachando lenha com um machado  que rebrilhava ao sol. Ah! Só pode ter sido nele que a juventude transviada e outras tantas juventudes de nomes complicados se inspiraram para se vestirem. Deviam t lhe pagar pela Idea que, na sua loucura mansa, lançou há mais de trinta anos, lá nos confins do céu – Estrela.

        A Júlia-Pé-de-Moleque, esguia, pálida, quase bonita, cantando sua paixão pelo moço rico que nunca ia se enamorar por ela. Sua voz saía de um lugar tão fundo, tão distante, que não  podia ser do coração dela – juro, hoje entendo, era de outro mundo.

        Lá se foi no “Caminhão de Barbacena”, sai comprida, de cordão , recitando pro vento levar. Para onde?  Ah, pro meu coração, que ainda se lembra:

 

                        Lá vem o carro de boi

                        Cheio de moça fremosa,

                        No meio vem o Quinzinho

                        Cheirando botão de rosa.

 

        O Custódio, bravo, doido varrido, dando bordoadas no ar, espantando fantasmas que meu coração chega a ver...

        O Chico-Torto, ai que  medo dos feitiços que ele fazia, com cinza de lenha, espelho e titica de galinha...

        O Pedro Bobo, do Sô Tavinho, batendo uma gamela de brevidade de rapadura pra dona Terezinha pôr na venda; batia, batia e mastigava a língua vermelha, como uma vaquinha mansa no presépio.E as brevidades, como dizia meu irmão caçula, eram de barro...”Barro” mais gostoso!

        A Albertina da Vila, rindo, rin-do-o, ah,-ah,ah! Segurando suas mil bonecas:

        _ Bo-o-ne-ca-á! Bo-ne-ca-á!

        E seus olhinhos puxados sumiam no seu rosto moreno.

        O Sô Joaquim Jatobá, limpinho, abotoado até o gogó, calça apertada, justinha, cintura lá debaixo dos braços, cara de chinês, só faltavam os dos baldinhos nos ombros. Descalço, era o freguês da mamãe para o jantar. E nós, só pra ouvirmos as respostas de sempre:

_Sô Joaquim, o senhor gosta de batata frita?

        _ Eu? Ah! Eu odoro!

        _ De que o senhor gosta mais?

        _ Ah! Eu odoro quarqué mustura!

        Ele ria em chinês pra gente, antegozando o prato cheio de mustura...

Gente, parece sono. Enquanto escrevo, eles estão aqui, tão perto de mim... Parece sonho.

        O Generoso, abrutalhado, arrematada, outro grande rachador de lenha. E mamãe conselheira:

        _Generoso, você não pode judiar dos meninos, é pecado, você vai pro inferno! – E ele, tram-cham:_ Que que eu posso fazê? Vou mêmo!

        Depois, impressinado com a encenação da Semana Santa, a Procissão do Encontro, santos vestidos, enormes, feito gente. E ele pra mamãe:

        _Maria,  Maria, ocê viu o Deus na rua? Eu onte topei com ele na esquina, de cabelo de gente e tudo...

        Ah! Meus bobos felizes! Ah, meus queridos homens-meninos, mulheres-fadas. Hoje estou com mais saudade de vocês! Mais saudade!

        Até escuto o Mota servindo seu pratão e explicando, com seu traje metaleiro:

        _Vô pô mais farinha mode endurecê... E mexia o feijão com a farinha e voltava feliz da vida:

        _Agora, vô pô mais feijão, mode amulecê...

        E, assim, comia, comia, comia.

        E a gente ria, ria, ria...

        Na maior bondade! Feito bobos!

        De verdade...

 

....................................................................................................

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria

                Ah! Nunca senti tanta saudade dos tipos populares de Estrela!

        Nunca pensei que ia ser bagageira de tantas vidas, de tanta ternura e poesia. Com eles,,pelas ruas e becos empoeirados, fui armazenado belezas, guardando sorrisos puros e olhares de outros mundos. Fiquei para contar como eles eram belos em seus andrajos, como sorriam bonito com aquelas bocas murchas e moles. Fiquei. Meu coração descobriu, em cada um, a feiura mais bonita que havia, a poesia mais sem rima que eu ouvi.

        Eles enfeitaram minha infância. Como as fadas e as bruxas, como os príncipes e rainhas, como São Tarcísio e Santa Terezinha. Como os pastorzinhos de Fátima.

        Eles souberam marcar a minha alma como as valsas vienenses que a igreja tocava às 18 horas. (Ah, 6 horas da tarde é mais bonito, é a boquinha da noite...)

        O João Macuco,-  o Mota, com seus cinturões de tachinhas e ilhoses, seu cordão de barbantes coloridos  no pescoço de Hércules, rachando lenha com um machado  que rebrilhava ao sol. Ah! Só pode ter sido nele que a juventude transviada e outras tantas juventudes de nomes complicados se inspiraram para se vestirem. Deviam t lhe pagar pela Idea que, na sua loucura mansa, lançou há mais de trinta anos, lá nos confins do céu – Estrela.

        A Júlia-Pé-de-Moleque, esguia, pálida, quase bonita, cantando sua paixão pelo moço rico que nunca ia se enamorar por ela. Sua voz saía de um lugar tão fundo, tão distante, que não  podia ser do coração dela – juro, hoje entendo, era de outro mundo.

        Lá se foi no “Caminhão de Barbacena”, sai comprida, de cordão , recitando pro vento levar. Para onde?  Ah, pro meu coração, que ainda se lembra:

 

                        Lá vem o carro de boi

                        Cheio de moça fremosa,

                        No meio vem o Quinzinho

                        Cheirando botão de rosa.

 

        O Custódio, bravo, doido varrido, dando bordoadas no ar, espantando fantasmas que meu coração chega a ver...

        O Chico-Torto, ai que  medo dos feitiços que ele fazia, com cinza de lenha, espelho e titica de galinha...

        O Pedro Bobo, do Sô Tavinho, batendo uma gamela de brevidade de rapadura pra dona Terezinha pôr na venda; batia, batia e mastigava a língua vermelha, como uma vaquinha mansa no presépio.E as brevidades, como dizia meu irmão caçula, eram de barro...”Barro” mais gostoso!

        A Albertina da Vila, rindo, rin-do-o, ah,-ah,ah! Segurando suas mil bonecas:

        _ Bo-o-ne-ca-á! Bo-ne-ca-á!

        E seus olhinhos puxados sumiam no seu rosto moreno.

        O Sô Joaquim Jatobá, limpinho, abotoado até o gogó, calça apertada, justinha, cintura lá debaixo dos braços, cara de chinês, só faltavam os dos baldinhos nos ombros. Descalço, era o freguês da mamãe para o jantar. E nós, só pra ouvirmos as respostas de sempre:

_Sô Joaquim, o senhor gosta de batata frita?

        _ Eu? Ah! Eu odoro!

        _ De que o senhor gosta mais?

        _ Ah! Eu odoro quarqué mustura!

        Ele ria em chinês pra gente, antegozando o prato cheio de mustura...

Gente, parece sono. Enquanto escrevo, eles estão aqui, tão perto de mim... Parece sonho.

        O Generoso, abrutalhado, arrematada, outro grande rachador de lenha. E mamãe conselheira:

        _Generoso, você não pode judiar dos meninos, é pecado, você vai pro inferno! – E ele, tram-cham:_ Que que eu posso fazê? Vou mêmo!

        Depois, impressinado com a encenação da Semana Santa, a Procissão do Encontro, santos vestidos, enormes, feito gente. E ele pra mamãe:

        _Maria,  Maria, ocê viu o Deus na rua? Eu onte topei com ele na esquina, de cabelo de gente e tudo...

        Ah! Meus bobos felizes! Ah, meus queridos homens-meninos, mulheres-fadas. Hoje estou com mais saudade de vocês! Mais saudade!

        Até escuto o Mota servindo seu pratão e explicando, com seu traje metaleiro:

        _Vô pô mais farinha mode endurecê... E mexia o feijão com a farinha e voltava feliz da vida:

        _Agora, vô pô mais feijão, mode amulecê...

        E, assim, comia, comia, comia.

        E a gente ria, ria, ria...

        Na maior bondade! Feito bobos!

        De verdade...

 

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ESTRELADOS DE MINHA INFÂNCIA
Maria
                Ah! Nunca senti tanta saudade dos tipos populares de Estrela!
        Nunca pensei que ia ser bagageira de tantas vidas, de tanta ternura e poesia. Com eles,,pelas ruas e becos empoeirados, fui armazenado belezas, guardando sorrisos puros e olhares de outros mundos. Fiquei para contar como eles eram belos em seus andrajos, como sorriam bonito com aquelas bocas murchas e moles. Fiquei. Meu coração descobriu, em cada um, a feiura mais bonita que havia, a poesia mais sem rima que eu ouvi.
        Eles enfeitaram minha infância. Como as fadas e as bruxas, como os príncipes e rainhas, como São Tarcísio e Santa Terezinha. Como os pastorzinhos de Fátima.
        Eles souberam marcar a minha alma como as valsas vienenses que a igreja tocava às 18 horas. (Ah, 6 horas da tarde é mais bonito, é a boquinha da noite...)
        O João Macuco,-  o Mota, com seus cinturões de tachinhas e ilhoses, seu cordão de barbantes coloridos  no pescoço de Hércules, rachando lenha com um machado  que rebrilhava ao sol. Ah! Só pode ter sido nele que a juventude transviada e outras tantas juventudes de nomes complicados se inspiraram para se vestirem. Deviam t lhe pagar pela Idea que, na sua loucura mansa, lançou há mais de trinta anos, lá nos confins do céu – Estrela.
        A Júlia-Pé-de-Moleque, esguia, pálida, quase bonita, cantando sua paixão pelo moço rico que nunca ia se enamorar por ela. Sua voz saía de um lugar tão fundo, tão distante, que não  podia ser do coração dela – juro, hoje entendo, era de outro mundo.
        Lá se foi no “Caminhão de Barbacena”, sai comprida, de cordão , recitando pro vento levar. Para onde?  Ah, pro meu coração, que ainda se lembra:
 
                        Lá vem o carro de boi
                        Cheio de moça fremosa,
                        No meio vem o Quinzinho
                        Cheirando botão de rosa.
 
        O Custódio, bravo, doido varrido, dando bordoadas no ar, espantando fantasmas que meu coração chega a ver...
        O Chico-Torto, ai que  medo dos feitiços que ele fazia, com cinza de lenha, espelho e titica de galinha...
        O Pedro Bobo, do Sô Tavinho, batendo uma gamela de brevidade de rapadura pra dona Terezinha pôr na venda; batia, batia e mastigava a língua vermelha, como uma vaquinha mansa no presépio.E as brevidades, como dizia meu irmão caçula, eram de barro...”Barro” mais gostoso!
        A Albertina da Vila, rindo, rin-do-o, ah,-ah,ah! Segurando suas mil bonecas:
        _ Bo-o-ne-ca-á! Bo-ne-ca-á!
        E seus olhinhos puxados sumiam no seu rosto moreno.
        O Sô Joaquim Jatobá, limpinho, abotoado até o gogó, calça apertada, justinha, cintura lá debaixo dos braços, cara de chinês, só faltavam os dos baldinhos nos ombros. Descalço, era o freguês da mamãe para o jantar. E nós, só pra ouvirmos as respostas de sempre:
_Sô Joaquim, o senhor gosta de batata frita?
        _ Eu? Ah! Eu odoro!
        _ De que o senhor gosta mais?
        _ Ah! Eu odoro quarqué mustura!
        Ele ria em chinês pra gente, antegozando o prato cheio de mustura...
Gente, parece sono. Enquanto escrevo, eles estão aqui, tão perto de mim... Parece sonho.
        O Generoso, abrutalhado, arrematada, outro grande rachador de lenha. E mamãe conselheira:
        _Generoso, você não pode judiar dos meninos, é pecado, você vai pro inferno! – E ele, tram-cham:_ Que que eu posso fazê? Vou mêmo!
        Depois, impressinado com a encenação da Semana Santa, a Procissão do Encontro, santos vestidos, enormes, feito gente. E ele pra mamãe:
        _Maria,  Maria, ocê viu o Deus na rua? Eu onte topei com ele na esquina, de cabelo de gente e tudo...
        Ah! Meus bobos felizes! Ah, meus queridos homens-meninos, mulheres-fadas. Hoje estou com mais saudade de vocês! Mais saudade!
        Até escuto o Mota servindo seu pratão e explicando, com seu traje metaleiro:
        _Vô pô mais farinha mode endurecê... E mexia o feijão com a farinha e voltava feliz da vida:
        _Agora, vô pô mais feijão, mode amulecê...
        E, assim, comia, comia, comia.
        E a gente ria, ria, ria...
        Na maior bondade! Feito bobos!
        De verdade...
 
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